quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Coração dá cena

teatro no sangue
por maneco nascimento

Que ator, dos + curiosos, não saberia alguma coisa sobre Hamlet. Aquele Príncipe da Dinamarca que se veste de anjo vingador e, na expressão dramática de grande trágico shakespereano, transforma o reino, casa de seu pai morto por traição e adultério, num lago de sangue? Não sobra semente, da casa do Príncipe herdeiro, atraiçoada pelo tio e pela própria mãe, mas vingada por ele.

De grandes montagens, em derredor do mundo, e virtuosismos para britânicos, outros povos mundo afora e (in)traduções feito obras relidas, ou rinventadas, à pedra base dramática do autor inglês, ganharam posteridade, em cinco séculos dinamizados pela história da literatura universal dramática, nascida nas terras e tintas do dramaturgo de Stratford-upon-Avon.

As fronteiras abertas do Teatro Sem Tradução, em tempos de Lusofonia ampliada, trouxeram + uma visita às terras estrangeiras de Shakespeare. Na noite do dia 24 de agosto, às 20h30, no Theatro 4 de Setembro, Angola demonstrou para a recepção do FestLuso 2016 - Ano Júlio Romão, a grata surpresa de um Hamlet crioulo. "Hamlet - O Preço da Vingança" às falas, linguísticas apropriadas e representação de cultura e empoderamento contextual das vozes de África de Luanda.

[Um espírito vagante circula sob o Reino, as barreiras entre o natural e o sobrenatural são quebradas, o atormentado jovem caminha a beira da loucura. As suas escolhas são simples: Vingança ou misericórdia; Esperança ou desespero; Vida ou Morte (...)
Ilustrado de uma forma contemporânea, sem limitações no tempo e espaço, essa viagem emocionante proporciona uma inovadora e criativa representação de uma das maiores obras da Dramaturgia Universal.]

"Hamlet - O Preço da Vingança" adaptado, dirigido e também representado por Emanuel Nkruma Paim, na voz do Príncipe ébano, em sinérgica sintonia com discurso, dialética ampliada e trágico dramático do texto original.

 A dramaturgia e encenação de Paim se afina contundente às vezes de sentar lugar de morada do reino nas raias africanas. Conduz acomodação feliz e repercute um olhar político de literatura universal nos canteiros da etnia que envolvem terra de ficção e geografia de material humano concreto do laboratório do Projeto Resgarte.

Cenografia se finaliza um trono temático contextual, duas grandes máscaras às laterais, como portais de mapeamento de desenho de cena a que as personagens andejem e, como assomo às respostas estéticas de linguagem e significados e significantes, estão + a luz, figurinos e maquiagem  no arredondamento do conjunto plástico apresentado.

Elenco empertigado, com destaque ao Conselheiro (que é morto por engano, enquanto se escondia atrás da cortina, pela espada de Hamlet); o amigo de Hamlet, que consegue dar uma leveza ao drama, quando inflexiona textos trágicos para humor premeditado a gerar riso, sem apelo do fácil. Seu "timing" assegura momentos de relaxamento da tragédia, como no momento de encontro com o fantasma do pai do Príncipe.

O Hamlet, de Emanuel N. Paim, tem uma partitura tradicional com a leveza do teatro que se desvincula do engessado. Essa experiência angolana de desprender-se dos paradigmas na busca de ato + naturalista e, quase informal, parece escola e não compromete a ação dramática, gera identidade de intérprete de Luanda. Define sinal ao conjunto da obra expiada, com dignidade e acento cênico.

Há no espetáculo uma aura de bem sentir e dar-se em coração à cena e demonstrar teatro no sangue pulsante de representar-se e bem representar na práxis conceitual flexível de cena demonstrada. Todo o elenco soma contributo ao jogo narrativo consignado. Emanuel Nkruma Paim, Mayomona Vicente, Quim Fasano, Lizeth Joaquim, Wime Bráulio Martins, Helena Moreno, Sidonio Massoxiartz defendem uma obra ampliada, digna de impetuoso ousado, teatral e de assento relevante ao projeto e proposta de cena finalizada.

Investem no drama, quebram o paradigma ao reinventarem-se à aldeia de identidade e licença poética de fuga do perfil original e suas rubricas e, se nos aproximam de um Hamlet negro e afeito ao território de sua casa, família, reino. Para sentimentos humanos falhos
e universais, como a obra original propõe.

Uma das tragédias + sangrentas de Shakespeare, não perde essa essência, que é mote do discurso autoral, mas ganha uma leveza e até refresca a tensão no humor peculiar angolano que detém uma brasilidade irmã da alegria brasileira, porque somos peça de mesmo coração de sangue para arte, língua e territorialidade antropológica irrecusável.

O Hamlet na quebra da parede quarta até transforma o reino a que se refere em Piuaí. Gerou proximidade de alegria e intimidade com cá nosotros pares lusófonos. Grosso modo "Hamlet: O Preço da Vingança" vinga o sangue pagão da obra mergulhada e se inspira na reinvenção de obra festejada, enquanto abre caráter de novidade de representação.

O Projeto Resgarte, Luanda e actores e actrizes da companhia dramática, às vezes da narrativa do herói trágico shakespereano, estão de parabéns por proporcionarem teatro íntegro, denso, suave determinante de proposição cênica compreendida e luz de discurso lusófono ao transversal poético de drama circunspecto.

Evoé, Hamlet angolano!

(público de Hamlet, por Adalmir Miranda)


fotos/imagem: (Adalmir Miranda)

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