sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Ópera sem tostões

vidas invisíveis
por maneco nascimento

O FestLuso - Teatro na Rua nos brindou, na tarde de hoje, 28 de agosto, um belo trabalho no passeio da nossa urbanidade de cotidianos das cidades (in)visíveis. Teatro para deleite da classe e de toda a recepção que parou para ver a montagem do Dragão 7 de Teatro, de São Paulo, SP Brasil.


Texto limpo para teatro "sujo". Teatro de técnica depurada à arte do ator e método em drama assepsiado no meio do mundo encardido. Drama sério, mas liberado de tragédias óbvias do teatro morto e aliviado pela picardia e ironias de críticas das dependências e (in)eficiências de protegerem um(a) ao outro(a). 

Se o texto é estritamente atual, a dramaturgia de cena, que os coloca na rua, no passeio da praça, calçada largada e habitat natural de pessoas vulneráveis ao dia e o tempo do esquecimento, é então muito apropriada para arranhar e lamber quem passa e espia a expiação humana na ópera sem tostões.

Zonda, a cega (Letícia Bortoletto)) e Tiri, o de braços amputados (Neviton de Freitas), granjeiam a cantilena distanciada, sem febre terçã a melodrama e, até riem, das próprias sortes, em ataque e contraponto de natureza escorpiã, embora dependam de favores a benefícios de sobrevivência no mundo cão.

O original "A cavaqueira do poste", do autor moçambicano Sérgio Mabombo, recebeu adaptação do texto e o nome de "Deus lhe dê em dobro" pelas mãos de Creuza F. Borges que também assina a encenação. E o espetáculo leva a produção e montagem do Grupo Dragão 7.

A dramaturgia, de raiz e desdobramento, traz alguma intertextualidade  com Becket, em "Esperando Godot". O casal de "Deus lhe dê em dobro" , ou pelo menos a mulher, insiste + na espera de Drumond Galaska. 

Na margem da vida e mergulhados na própria miséria e condição humana de total abandono, mesmo guardando uma solidariedade, entre eles, Zonda e Tiri voltam os sentidos que lhes sobram, também, para a expectativa da chegada do Salvador.

A entrega total ao abandono, e a fuga de um, os olhos do (a) outro (a), as mãos daquele, quebra a zona de (dez)conforto do casal de amigos. A redenção, através do deus Ex-machine, chega em um pacote de dinheiro, entre os guardados de Zonda

Essa licença profética, na vereda da salvação em tempos de perdidos, não tem + sentido para alguém sem olhos. Bens tão materiais para não ter com quem dividir, não tem nenhum sentido a ser guardado. A mulher joga fora o presente e sai à sorte de pedinte.

A construção da personagem dos intérpretes, Letícia Bortoletto e Neviton de Freitas é muito convincente e competente. Letícia, de emoções reservadas a não gastar em exageros, economia nobre de composição. 

E Neviton de Freitas, que nos apresenta uma inquietação envergonhada e indignação agressiva em contenção maturada, mas impositiva. Traz uma qualidade construtiva impecável de gerir a alma da personagem a vazar na margem dos olhos e corpo falante, enobrecidos na sujeira de anti-heróis da comédia em trágico humana.

Belo exercício de ator e atriz em libelo da condição humana expiada das vidas invisíveis.

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