segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Quisera eu gauche...

Raimundo, José ou Carlos seria.
por maneco nascimento

"Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam e um poeta desarmado é mesmo um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos." (Andrade, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 29a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. IN prefácio de Affonso Romano de Sant'Anna)

(C.D.A./imagem divulgação)

Hoje acordei achando-me tomado pelo Sentimento do Mundo (1940). E, como não sê-lo, pois amante de Drummond. Meu poeta preferido sempre me disse que Alguma Poesia (1930) também habita Brejo das Almas (1934) e, como José (1942), mesmo que não se chamasse Raimundo, cultivou Rosa do povo (1945) e legou a (in)cautos e leitores e gentes curiosas toda poesia que ganhou recepção livre, atenta e detida na alma do Poeta.

Sobre Rosa do Povo, está dito "Este Livro, publicado em 1945, embora recebesse boa acolhida do público e da crítica, não teve nenhuma edição autônoma. (...) depois, incorporado a volumes de poesias completas do autor. Quis a Record fazê-lo voltar à situação primitiva, como obra que, de certa maneira, reflete um 'tempo', não só individual mas coletivo no país e no mundo (...) Algumas ilusões feneceram, mas o sentimento moral é o mesmo - e está dito o necessário. C.D.A." (comentário de apresentação da obra, pag. 19 IN Andrade, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 29a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. prefácio de Affonso Romano de Sant'Anna) 

De poeta para poeta, as palavras que, segundo Drummond, "(...) não nascem amarradas,/elas saltam, se beijam, se dissolvem,/no céu livre por vezes um desenho,/são puras, largas, autênticas, indevassáveis.//Uma pedra no meio do caminho/ou apenas um rastro, não importa./Estes poetas são meus (...) Furto a Vinícius/sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo./Que Neruda me dê sua gravata/ chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakovski./ São todos meus irmãos, não são jornais/nem deslizar de lancha entre camélias: é toda minha vida que joguei (...)" (Consideração do Poema. C.D.A, Rosa do povo, pag. 21) 


De poeta para poeta, entre as palavras, dialogismos, intertextual de autor que passeou pela língua poética de contemporâneo, ou que arriscou poema a quem amou a poesia antes, "O meu pai era paulista/Meu avô, pernambucano/O meu bisavô, mineiro/Meu tataravô, baiano/Meu maestro soberano/Foi Antonio Brasileiro//Foi Antonio Brasileiro/Quem soprou esta toada/Que cobri de redondilhas/Pra seguir minha jornada/E com a vista enevoada/Ver o inferno e maravilhas//Nessas tortuosas trilhas/A viola me redime/Creia, ilustre cavalheiro/Contra fel, moléstia, crime/Use Dorival Caymmi/Vá de Jackson do Pandeiro//Vi cidades, vi dinheiro/Bandoleiros, vi hospícios/Moças feito passarinho/Avoando de edifícios/Fume Ari, cheire Vinícius/Beba Nelson Cavaquinho (...)" (Paratodos: Chico Buarque de Holanda)

E ainda trocam, poetas e poesias, aproximações significantes e significadas e fundem gerações poéticas e marcas de identidade cultural brasis. 

Em Chico, "Quando nasci veio um anjo safado/O chato do querubim/E decretou que eu estava predestinado/A ser errado assim/Já de saída a minha estrada entortou/Mas vou até o fim (...)" (Até o Fim: Chico Buarque), em Drummond, "Quando nasci, um anjo torto/desses que vivem na sombra/disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida (...)" (Poema de Sete Faces: C.D.A.) e ainda Torquato, "Quando eu nasci/um anjo louco muito louco/veio ler a minha mão/não era um anjo barroco/era um anjo muito louco, torto/com asas de avião//eis que esse anjo me disse/apertando minha mão/com um sorriso entre dentes/vai bicho desafinar/o coro dos contentes/vai bicho desafinar/o coro dos contentes/let's play that (...)" (Let's Play That:  Jards Macalé e Torquato Neto) 

Inquietações de sempre rompem o asfalto, nascem das ruas, desbotadas mas vivas e fazem histórias de contar, cantar e viver as coisas de vida e poesia que refletem humanidade. Drummond quis refletir, como bom poeta que é, seu olhar ao mundo, como o fez Mário Faustino, em O homem e sua hora (1955), à própria sorte de estar e ser gente em seu tempo. 

"Aquele tempo, como reconhece Drummond, era 'tempo de partido/ tempo de homens partidos'; e ele, segundo suas notas biográficas, em 1945, ano de publicação de Rosa do povo, a convite de Luís Carlos Prestes, figura como co-diretor do diário comunista, então fundado, Tribuna popular (...) 'afasta-se do jornal, meses depois, por discordar de sua orientação'. Mas vestígios dessa contaminação ideológica estão em poemas onde fala que a 'burguesia apodrece', refere-se ao 'mundo capitalista' e, além de louvar a resistência de Stalingrado, tem expectativas sobre a vitória russa em Berlim.(Affonso Romano de Sant'Anna IN Andrade, Carlos Drummond de. A rosa do povo. 29a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005. prefácio de Affonso Romano de Sant'Anna)

Na década de 80, Cazuza encantaria o país com "A burguesia fede/A burguesia quer ficar rica/Enquanto houver burguesia/Não vai haver poesia (...)" (Burguesia: George Israel/ Cazuza/ Ezequiel Neves). Bebeu também na fonte do poeta itabirano e deu seu próprio sinal de alerta poético, em passeio pelas águas que não se repetem.

O poeta nos aponta que um poeta se faz com lidas diárias, um prospectador de poemas, no reino das palavras. Lá, eles, poemas que esperam ser escritos, estão paralisados, mas sem qualquer desespero. 

"Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.", e quando, de perto, se "(...) contempla as palavras./Cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra/e te pergunta, sem interesse pela resposta,/pobre ou terrível, que lhe deres:/Trouxeste a chave?//Repara:/ermas de melodia e conceito/elas se refugiaram na noite, as palavras./Ainda úmidas e impregnadas de sono,/rolam num rio difícil e se transformam em desprezo." (Procura da Poesia: C.D.A., Rosa do Povo, pags. 24, 25, 26)

Amanheci amantíssimo de Drummond. Ser guache ou não ser, eis que amanheci pensando em ti. Meu Carlos, meu Drummond, meu de Andrade para rosas, áporo, caso do vestido, carta a Stalingrado, morte do leiteiro... e, sendo assim gauche, a flor, a vida e a poesia dizem, no poeta, que esse mineiro, do ano de 1902, nasceu em Itabira e se fez poesia.

"Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro"- confessou em "Confidência do Itabirano" (orelha de Rosa do Povo, edição de 2005). 

Sim, Carlos. Malhado na poesia por excelência.

(querido Drummond/imagem divulgação)

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