segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O homem suas tribos

a ser, não-ser, voltar a Ser
por maneco nascimento

(...) a criação poética é uma operação durante a qual o poeta tira ou extrai de seu íntimo certas palavras. Ou, utilizando a hipótese contrária, do fundo do poeta, em momentos privilegiados, brotam as palavras. No entanto, não existe tal fundo; o homem não é uma coisa, e menos ainda uma coisa estática, imóvel, em cujas profundidades jazem estrelas e serpentes, joias e animais viscosos. Flecha esticada, sempre rasgando o ar, sempre adiante de si, precipitando-se mais além de si mesmo, disparado, exalado, o homem avança sem cessar e cai, e a cada passo é outro e ele mesmo. A ‘outridade’ está no próprio homem (...)” (Paz, Otavio. O Arco e a lira. Trad. de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. 368p. [Coleção Logos]. pag. 215)
(trilhas poéticas a Salgados, Maranhões e mapas da tribo/divulgação)

Volto para casa trotando/nas horas/ao abrigo/insanável/de minhas/vidas havidas. Retorno/soletrando os trilhos,/face ao enclave do sonho,/face à lira do crepúsculo.//Existo ante um eu/que come alfaces/e um outro que disfarça/entre relâmpagos.//E sigo à revelia/deste que migra/ao ontem de amanhã,/como se me abrissem/uma lavoura de espelhos.//Cidades anônimas gritam/em minha carne; avenidas/secretas guardam meus sapatos;/de tantos que me tornei,/já não me retorno ao mesmo.((Maranhão, Salgado, 1953 - o mapa da tribo. [1. ed.] Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. il. 103 pgs.)

Em "Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais", Poema 1., d’O Mapa da Tribo, desse querido e caçador de palavras e que à beira do abismo, debruça-se sobre a criação que há em si e nos outros contidos que contêm sua práxis criativa do homem que não passa duas vezes pela mesma água do rio, como defende Heráclito de Éfeso. E, Salgado Maranhão, é assim que assina esse maranhense/piauiense de coração, alma, territórios de pés molhados nas águas, barreiros, aguapés e córregos das memórias afetivas que plantam o poeta e brotam o senhor da própria poesia, flecha esticada.
(o sal da nossa terra e de geografias poéticas: S. Maranhão/divulgação)

“(...) Assim, a imagem reproduz o momento da percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido. O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria. Ou, com dizia Machado: não representa, apresenta. Recria, revive nossa experiência do real (...)(O Arco e a lira. pag. 132)

Ainda de (Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais), poema 1., Maranhão apresenta um segundo poema, em prosa, ou prosa poética (mapeados em ordem alfabética) para este e os outros seis que abrem O Mapa da Tribo. Uma coda, complementaridade, ou nada a ser explicado, um contínuo poético que não seja só poesia e obra dadas, mas isto e aquilo que se faz poeta, poema e seu criador debruçado sobre o eu e os outros das tribos familiares experimentadas.

(...) a) e o menino cresceu comendo vésperas, paginando o pergaminho do vento. O sonho a bater na trave, o olhar regido pelos testículos. Tanto adeus sem partidas; tanta terra dura nos calcanhares tecendo o tempo ao revés: o rebento (sem nome) feito para estoque, para perder-se entre o seria e o era tempo.” [o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais, a), pg. 18]

Os mundos em mundo do poeta e suas tribos, o passado presente futuro, futuro presentemente presente em nosotros leitores e filiados à recepção poética do criador. “O poeta fala das coisas que são suas e de seu mundo, mesmo quando nos fala de outros mundos: (...) O poeta não escapa à história, inclusive quando a nega ou a ignora. Suas experiências mais secretas ou pessoais se transformam em palavras sociais, históricas. Ao mesmo tempo, e com essas mesmas palavras, o poeta diz outra coisa: revela o homem (...) esse movimento que o lança sem cessar para diante, conquistando novos territórios que, mal são tocados, se tornam cinza, num renascer e remorrer e renascer contínuos (...) para que as palavras nos falem dessa ‘outra coisa’ de que todo poema fala é necessário que também nos falem disto e daquilo (...)(O Arco e a lira. pag. 230)

2. O sertão mordeu meus calcanhares. O ser-/tão é um coiote vestido/de súplica (sem que eu visse, abriu/cáries em minhas lembranças);/eis como sangra o poema/vestido/de ausentes;/eis minhas unhas de barro/e servidão.//Em meu corpo/o verão plantou cigarras,/ergueu palavras sobre ruínas/(e essa hipérbole para além do havido.)/Por onde passo/até as pedras uivam.///b) (Já era lúdico o latejar da luz nos olhos ante a infalível espera da manhã servil. E o ruminar da loucura ilustrada pelo silêncio. Já era férrea a fé cavando a pedra. E a porta aberta ao nunca. Nessa entranha de enigmas uma voz ousou lapidar meu delírio. Junto às armas vencidas e a semente dos mortos. Junto ao cio desta nuvem que ri.” [o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais, b), pag. 20]

O poeta, homem e bicho, confunde-se com a coisificação, da natureza das geografias afetivas, feita súplicas (im)pertinentes à natureza humana regurgitada nas memórias reviradas e concretizadas nas imagens reatualizadas, de fé que cava pedra a silêncios e invisibilidade e entranha enigmas a retorno do salto mortal. “A palavra poética jamais é completamente deste mundo: sempre nos leva mais além, a outras terras, a outros céus, a outras verdades (...) A imagem nunca quer dizer isto ou aquilo. Sucede justamente o contrário, como já se viu: a imagem diz isto e aquilo ao mesmo tempo. E mais ainda: isto é aquilo.(O Arco e a lira. pag. 231)

Poeta e ciência criativa, entre o mergulho ao primordial criador e a razão e sensibilidade dinamizados pelo feito e efeito da palavra imagética e dual.(...) E digressão rupestre/para saudade e sanfona; um/talvez Éden/perdido/no improvável/ (...) derrapante do que sou/a origem me socorre.//É no arder da inocência/que se morre (...) Chamarei de ardil o oráculo que transmigra o fogo e o deserto. Chamarei de chuva o esquivo raio da memória. É possível colher uma flor no cio das facas. Porque é pétala o sangue que remove a pedra; porque sanguínea é a sombra da palavra (...)” [o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais, 3./c). pags. 21 e 22]

A volta de Salgado à terra que deseja reencontrar, idas e vindas a remoer o calor das memórias, um talvez intertextual com as horas dobalinas, remoídas no calor das tardes. Ser e o não-ser dobram-se em mesma busca e buscam resposta do encontro com o outro.

4. Ainda sei domar a treva –/ essa nênia/composta para os olhos./Porque pertenço/à seita dos que têm/cítara nos dentes./Eu que sou da terra/cortada pelo não-ser, (...) Apenas a rua dos loucos/me alista/em seus anônimos./E ainda que eu invente/o amanhecer,/é da treva/o que se atreve./Sou o que adestra/as palavras/e o desassossego -/ante a verdade servida com sangue,/ante o tempo/em que a dor bate à porta./Daqui,/destas siglas do efêmero,/tento iludir o perigo,/mas os lobos não comem sílabas.” [o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais4., pags. 23 e 24] 

“(...) desde que somos, somos o mundo e o mundo é um dos constituintes de nosso ser. O mesmo ocorre com as palavras: não estão nem dentro nem fora, mas são nós mesmos, fazem parte de nosso ser. São nosso próprio ser (...) O poeta não escuta uma voz estranha; sua palavra e sua voz é que são estranhas: são as vozes do mundo, às quais ele dá um novo sentido (...) A palavra poética é a revelação de nossa condição original porque por ela o homem, na realidade, se nomeia outro, e assim ele é ao mesmo tempo este e aquele, ele mesmo e o outro.(O Arco e a lira. pag. 217)

O poeta Maranhão que viu(...) o corvo de olhos negros, sob um sol a diesel, com a fome tatuada em seu nome (...)”, Ele é este e aquele que revira “(...) a tempestade procurando a superfície de Deus.)(o mapa da tribo:  Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais. pag. 25) e revoga todos os contrários e revela (in)contidas palavras que falam da vida, das vozes e do mundo a caos e vaguidade em derredor de nós.

O homem imanta o mundo. Por ele e para ele, todos os seres e objetos que o rodeiam se impregnam de sentido: têm um nome. Tudo aponta para o homem (...) O homem é temporalidade e mudança, e a ‘outridade’ constitui sua própria maneira de ser. O homem se realiza ou se completa quando se torna outro. Ao se tornar outro, se recupera, reconquista seu ser original, anterior à queda ou despencar no mundo, anterior à cisão em eu e ‘outro’ (...) E porque pode ser outro é um ente de palavras.(O Arco e a lira. pag. 219)

Sendo um e outro, Salgado MaranhãoVem do crivo dos pés no barro esse abril ancestral cingido à memória; e vem da usina de espantos (...) tangido pelo mistério (...)” e recolhido ao avesso, vem “rompendo as brenhas e o esquecimento: o risco no lugar do rastro (...)”, deságua em seu“ (...) cais entre mapas e rotas perdidas.(o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais. pag. 26)

Poeta, cruzador de palavras, guerreiro das terras santas e de profanadas igrejas da reinvenção da palavra, esse é o poeta e criador e se instala no homem que(...) já é tudo o que deseja ser: rocha, mulher, ave, os outros homens e os outros seres. É imagem, núpcias dos contrários, poema dizendo-se a si mesmos. É, enfim, a imagem do homem encarnando no homem (...) A inspiração é lançar-se para ser, mas também e sobretudo é recordar e voltar a ser. Voltar ao Ser.(O Arco e a lira. pag. 221)

Nas bem traçadas linhas geográficas desse Mapa da Tribo, Salgado constrói-se em(...) uma existência de palavras (...)” e dói-lhe “(...) um coração tatuado de ausência (...)”. Poeta, é de toda imagem “(Era aceito lamber a facão a face alheia (...) Mesmo depois da pátria que me veste a moderno. Mesmo após o Goethe à luz da lamparina.)(o mapa da tribo: Neniarias E/Ou Fotogramas Verbais. pags. 28 e 29)

Como diz o poeta, Depois que se chega ao tudo, é preciso voltar a nado.E realiza a diáspora de geografias, sem a diáspora das memórias e empreende Os Outros Eus para “Terra sem nome” em dez movimentos in versos de (re)versos poéticos.  Em Coração no Lábio, tempo a “Domínios”; “Templo”; “Ladrante”; “Órbita”; “Nuvem”; Incêndios”; “Potro”; Mulher”; “Artéria”; “Pérgula”; “Léria”; “Córrego” e “Visagem” em viragens e presença do sexual.

Um lobo de ray-ban uiva à amada, em elegia sutil às terras do sensual conquistado e entradas atomizadas de paixão e prazeres tomados a si em conluio à outra. (...) Vem lava incendida que poliniza as mulheres; vem chuva secreta! (...)(Templo, p. 50); “Ouço ladrar uma ausência que me rasteja: loba a rosnar com a pata dos brutos (...) Mas grito na carne uma acesa sanha de ser. Um raio de pernas ruivas rasgou meu silêncio, (...)(Ladrante, p. 51 e 52); “(...) Busco a porta de um colo em que me deite, e, discípulo do relento, vendo uma língua para deleite.(Órbita, p. 53); “Tu és a pétala que atravessa a chuva e o jardim de espadas. E carregas no ventre a luz do grão (...) Uma nuvem de sândalo se aninha em teus álamos; uma nuvem que arrebata os fortes e os fracos como eu." (Nuvem, p. 54)

Ainda arremata em Incêndios, página 55,  “(...) Vem, mandala de sete faces, e rasga a noite que te nega os hormônios (...) Por isso, a gramática das flores transborda em teu sexo. Por isso é que te induz o mistério das coisas vivas. Vem para que eu te abra os gomos e te provoque incêndios.”  

Ousadas atrações ataviam frenesiQuando o fogo atávico implodir tuas saias de vento e tua carne adubar minha lança de pedra, será doce morrer, será como arder entre flores de sândalo (...) Agora serei incontido como a fome dos potros e meu desejo é um lobo em teu rastro.(Potro, p. 56)
Depilo tuas vestes íntimas obcecado pelo mergulho em teu luminoso abismo (...) há em mim uma urgência atávica: febril, como urgência da vida feroz, como o decreto da morte. E mergulho amparado em minha certeza inútil; a mesma do meu pai e de todos os meus ancestres; a mesma dos que morreram e morrerão em ti – alegremente! – desde Adão.(Mulher, p. 57)

E como é doce viver e morrer de prazeres calientes, o poeta doa o que temReceba estes frutos ávidos que inventei para te louvar. Como se não fosses o que és, fêmea, mas uma pérola acesa, uma flor de ônix (...) com o clamor de nossas áfricas abertas (...) Não há como secar esse rio de magma, não há como conter essa artéria que o desejo adoça.(Artéria, p. 58)

Sequestrarei teus labirintos antes que o medo esconda teus frutos; (...) serei hóspede dos teus gomos acesos (...) E serei marisco em teus mares convulsos; e serei a pérgula onde os pássaros anunciarão teus jardins (...)(Pérgula, p. 59) Antes fosse a léria onírica que te acende o lábio, antes o teu húmus – porque és flor do meu barro e o sol queimou teu nome em minha carne (...) Perdi séculos antes de ti.(Léria, p. 60)

Em “Córrego”, pag. 61, carrega sensações e declara Sou somente o que carrega o instinto, um córrego que desata enigmas (...) Cresceram flores em minhas pupilas – donde assisto a noite a incendiar-te. Um raio insone mora em tuas vestes.E, em “Visagem”, pag. 62,(...) Com as palavras ainda posso apertar seus ombros e guardar o silêncio que oculta sua pérola (...) Talvez eu possa esconder-me sob essa aragem de ausência e o sabre que anuncia as cicatrizes (...)”.

Completam o Mapa, poemas capitulados como Por Aqui Agora, nomeados em Litanias, de 1 a 10. Da Origem, as memórias ancestres e afetivos recordares de passados feitos presente. “Origem” e “Origem 2”; “Torrão”, a terra natal; “O Retorno”; “Paisagem” e “Paisagem 2”; “Trans”; “ A Febre Verbal”; “Labor”.

Dos últimos poemas inscritos na geografia dO Mapa da Tribo, vê-se em “Dos Renas(Seres)” marcas para obra que dá título ao livro. “O Mapa da Tribo”, o poema,  intertextualiza raízes e memórias da pele gentia e negra e excertaGuesa Errantede Souzândrade. Fecham o livro Pária 2e,Eis o que me enreda: o ofício de tecer nuvens. De pedra.” (Ofício, pag. 91)

(da pedra a música, lira atomizada/divulgação)

Salgado Maranhão é 7 Letras feito palavras 70 vezes 7, para perdões, memórias, história revisitada e licenças de profecias e poesias de lavor a contemporâneos sinais do passado presentificado em O Mapa da Tribo. Em vais e voltas ao Ser é pedra cinzelada pela pena em dinâmica construção poética.

Nenhum comentário:

Postar um comentário