segunda-feira, 28 de julho de 2014

Fogo fátuo

Teatro de pura expressão
por maneco nascimento


Na luz em resistência, abre-se a cena à atriz que brinca de acender palitos de fósforo, com intenção de gerar o fogo, aquecer a sopa e, em dialética de aproximação da linguagem dentro da linguagem, dividir a sopa das palavras e memórias da velha senhora que regurgita seu próprio tempo de resistir ao tempo.

A descrição do autor para o fogo efêmero, que é chama produzida na cabeça de pólvora e sua fugaz luz entre o amarelo atômico de diminuta partícula e o azul que flama em fins de fogo infátuo.

Dali parte enredo inteligente, texto rico de humanidade expiada e o diverso da natureza humana que desfila na trama dramática, com requintes de ironia ácida e, economicamente, histriônica no tempo e inflexão da diva pensada pelo peruano Eduardo Adrianzén e apropriada ao teatro nacional, à Eva Wilma, pelos diretores Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas.

Diva esta, que destrincha falas sociais mastigadas ao sabor delicado e tempo de bem viver a profissão na polifonia traquejada de Eva Wilma. Esta entre uma das + queridas do palco brasileiro e dona da personagem do próprio labor construído, no exercício do exercício. Charme e tranquilidade de vinho maturado, uma  dama no panteão de mulheres que defendem  o velho teatro, de tradição e modernidade. Que não perde sua hora e seu tempo de convencer. A Vivinha de sempre, assinatura vívida no teatro brasileiro.

Refletir idade de existir no caldeirão das novidades e novas incursões de modismos e linguagens instransferíveis de contemporâneos criadores, movidos por vaidades, media agressiva e mídias alimentadoras ao efeito cascata do próprio ego "criativo", de diretor do momento, confrontado com a experiência e velhice negadas.

Reunir velhas personagens em busca de um diretor. Um autor em busca do passado não vivido que possibilita, como moeda de troca, a solidariedade amorosa à uma grande atriz, há trinta anos recolhida ao anonimato, é mote ao sonho de retorno à cena em tempos que o pragmatismo transtorna o discurso e transforma o novo teatro em espetacularização de efeitos intransitivos, alardeados pela nova partitura à nova dança e teatro.
(arte divulgação Azul Resplendor)

Adrianzén recorta, significativamente, o tema cáustico proposto e comove e choca ao apresentar seis personagens em busca de sua própria forma de ver o teatro. Azul Resplendor contém a velha atriz; o autor desconhecido; o diretor de sucesso; a assistente de direção obscurecida pelo ego do diretor e amante; a atriz para toda obra do teatro ligeiro e o galã da tevê, com seus músculos, apelo sexual como carta de entrada e cérebro na média de sobrevivência da própria espécie.

Entre humor destilado no ácido digerível e regurgitações consentidas, amargas apresentações de acertos e erros e pavonices com plumagem estéreis, é que Borghi e Elcio vão costurando deliciosas inafeições e morte súbita inconsciente das personagens, do teatro vivo, compostas por Eva Wilma, Genézio de Barros, Guilherme Weber, Luciana Borghi, Débora Veneziani e Felipe Guerra.
(Eva Wilma é Blanca Estela/foto João Caldas)

Blanca Estela, a atriz convencida a retornar aos palcos (Eva Wilma); Tito Tápia, o autor de primeira viagem (Genézio de Barros); Antônio Balaguer, "o Diretor" (Guilherme Weber); Glória, a assistente de direção e diretora eclipsada pelo grande diretor (Luciana Borghi); a atriz do teatro tira-teima e alfaz-drama (Débora Veneziani) e o ator de novela de tevê e monstro alimentado pelas indústrias culturais (Felipe Guerra), confirmam um elenco afinado ao riso e ao entretenimento reflexivo.
(drama em metalinguagem/foto João Caldas)

O metateatro em que estão imergidos os atores e atrizes dá-lhes tempo para solos de apresentação das personalidades das personagens assumidas no mundo do show biz. Fracassos e ímpetos de sucesso se confrontam e contaminam a recepção do público, com uma lição de cor, que talvez permeie boa parte das relações dos bastidores do teatro de qualquer lugar em que hajam humanos e teatro da vida humana a representações e fingimento.

A Cenografia, de André Cortez, muito eficaz. Uma caixa redomada por luzes da ribalta e ambientações que se modificam com o serviço de contrarregra visível e dirigido à medida que a emergência de alteração da cena se impõe. Tudo pragmático, cama ou banco suscitado por praticável no nível do entendimento poético, sala de ensaio ou de imprensa, palco, cadeiras de palhinha (cor branca) que geram ambientes, torres (parede) de luzes que aquecem, ou esfriam o impacto da surpresa e efeitos e novas tecnologias em que as personagens abrem dialogismos com sua própria imagem reproduzidas em vídeo, ou simultaneamente refletida, ao vivo, para espetáculo da informação e notícia em série. Cenografia que atualiza a dinâmica da direção dramatúrgica conspirada.

A Luz, de Lúcia Chedieck, reluz Azul Resplendor. Calor e sobriedade mapeiam o desenredo das personagens, com significados e significantes na medida da sorte conjurada. Norteia os sentimentos espiados e redoma os fluxos de drama (in)contidos.

O Figurino, assinado por Simone  Mina, também compete em equilíbrio entre o óbvio incomum e segunda pele que deixa muito à vontade as personagens, sejam no drama, no metadrama de conluio, sejam nos estilos ao moderno e contemporâneo didático. Afina desenho em croquis convergidos à simplificação e ao rito de respostas à persona + determinante que a vestuária.

Trilha Sonora (Aline Meyer) insurgente e de ritmos incidentais fortes e de densidade convergentes ao todo, para azuis, resplendores e fluidos da fugacidade ecoada na trama reflexionada. A Tradução, do texto de Adrianzén, e Direção Geral, do espetáculo, conspiradas por Renato Borghi e Elcio Nogueira Seixas se completam.

A dramaturgia de cena, dos diretores brasileiros, é perspicaz, inteligente sem ser redundante, moto contínuo do fogo fátuo que é revirado no monturo de Azul Resplendor. Re-criam um mundinho particular, nas performances das personagens, que atomizam completude a ato, cena, arte do diretor e de intérpretes se metamorfoseando nas falas sociais do texto, sem nacionalidade, por estar inserido em natureza escorpiã de qualquer território livre do teatro da vida humana.

Eva Wilma, um esplendor para Azul resplandecido, na verve da própria história emprestada à livre construção da personagem de Blanca Estela. Não contradiz seu histórico, confirma que "tudo acaba bem, quando tudo fica bem". Delicadezas inflexionadas com verdades e convencimento no ato do fingimento.

Genézio de Barros conduz, com carisma, concentração e respeito à profissão, uma dobradinha tênue e ardente com Vivinha, enquanto compõe o Tito Tápia. Revela contenções e rompimento das comportas da emoção suscitada.

Guilherme Weber, uma graça e tônus refinado ao dar vida a Antônio Balaguer, o diretor das novas intervenções da cena contemporânea. Faz-se lembrar de fichinhas carimbadas da novidade em linguagem cênica apregoada como messiânica, amada ou negada pelo distinto da recepção. Tem um "timming" vigorosamente atraente e divertido. Sabe onde pisa, enquanto discursa o teatro para títeres  humanos e sugestionáveis ao teatro indutivo e espetacularizante vendido por Balaguer. Mantém a pira acesa.

Luciana Borghi defende sua vez e fica entre o apelo ao riso programado e texto detalhado no emocional racionalizado e no "metier" de assistente de direção eficaz transversal na metalinguagem de dramas e comédia. Débora Veneziani não foge à regra ao provocar, na sua construção da personagem, o perfil óbvio da atriz multimídia gracejado e mantém uma desenvoltura regular e reta ao propósito da facilitação da cena em resposta ao seu tempo de atriz que compreende sua arte de intérprete.

Felipe Guerra, domina a cena fácil do queridinho da mídia, garanhão da vez e voz que apregoa a efeméride do galã do momento, forjado no teledrama e sem traquejo ao mundo do teatro, mas chamariz de público aos novos tempos do mundo vaticinado por Adorno. Muito convincente, como personagem de si mesmo, caso seja prova de fogo imposta pela direção do espetáculo. Há uma centelha de ironia em que, talvez, personagens possam refletir perfis que encaixem na trama do teatro dessas gerações atuais.

Azul Resplendor é um tapa com luva de pelica. Um fogo fátuo queimando as vaidades apresentadas e, por vezes, refletidas nos bastidores de qualquer representante da plateia. O teatro da cena, fora da cena e emprenhado nas linhas, nas entrelinhas e para além das linhas da natureza humana verticalizada.
(elenco de Azul Resplendor/registro Antoniel Ribeiro)

O azul do palito de fósforo é fugaz, mas emblemático. Traz imagens e margens para licenças poéticas e proféticas fissuras na vida perfeita, jogada para debaixo do tapete, do mundo do show biz. Teatro à toda prova de fogo e lição de amor ao teatro da sobrevivência no universo do teatro da superfície resplandecente.
(Azul Resplendor, em Teresina/registro Antoniel Ribeiro)

Fogo fátuo e teatro de pureza de expressão revelado na metalinguagem de expiação da natureza humana.

(público fiel até o fim/registro Antoniel Ribeiro)

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