sexta-feira, 28 de junho de 2013

Encontro c’uma “velha” amiga

Encontro c’uma “velha” amiga
por maneco nascimento

“Raimunda Raimunda” desceu o céu das potestades dramáticas e armou o carroção da licença poética no tablado do Theatro 4 de Setembro, dia 27 de junho de 2013, a partir das 20 horas. A discípula do deus Ex-machine que reanimou os ritos de passagem e rituais à mímesis da tragédia e comédia foi nada menos que Regina Duarte.

Com a disposição de uma ninfeta, a tradicional e talentosa Regina reinou em terras e fronteiras chicopereireanas e reiterou o norte criativo e inteligente de Francisco Pereira da Silva, piauiense de Campo Maior, um dos + expressivos magos de poções e metáforas cênicas ampliadas à dramaturgia brasileira de feições do rico nordeste e suas memórias do inventário popular.

 Criador de “Raimunda Raimunda”, no ano de 1972, a tetratologia piauiense de teatro abriga os textos “Raimunda Jovita na Roleta da Vida ou Quis o Destino: De Pucella e Ninon!”; “O Trágico Destino de Duas Raimundas ou Os Dois Amores de Lampião Antes de Maria Bonita e Só Agora Revelados”; “Raimunda Pinto, Sim Senhor!” e “Ramanda e Rudá”.

Das quatro peças, Regina Duarte recortou duas para realizar sua leitura sobre Chico Pereira. As pérolas (es)colhidas, “Raimunda Pinto, Sim Senhor!” e “Ramanda e Rudá”. Numa saga de mulheres nordestinas, em busca de seu pássaro azulão, Chico ganhou o coração da atriz e deu-lhe mote para brilhar em falas do imaginário coletivo, porque a “vida é sonho” e o teatro mágico é ciência e arte permutadas. A diretora Regina Duarte sacou a carta da manga e reinventou o Chico numa recepção para “Ramanda e Rudá” e “Raimunda Pinto, Sim Senhor!”, quebrando a ordem natural da tetralogia do autor.

Das cenografias, para “Ramanda e Rudá”, no primeiro ato da geografia dramatúrgica de Regina, painéis definem a cena estabelecendo a arena, no tablado, às virtuoses e fugas do artista. Na diáspora em busca da terra de São Saruê, após a hecatombe, Ramanda Regina e Rudá, o hemafrodita de proveta, únicos sobreviventes da bomba atômica rimam a anacronia possibilitada pela dramaturgia trágica. Cenário neutro e preenchido de “vazios” diluídos no ar sólidos.

A “rarefeita” direção de arte planejada à cena ganha equilíbrio e reafina discursos autorais da cepa original e da releitura da direção organizacionada na cenografia e figurinos. Os figurinos e adereços de Ramanda e Rudá ganham ordem, na medida certa, e atomizam ações e deliberadas ilustrações pertinentes ao olho espectador e expectativas dramáticas do “neutro” cênico. Há para os figurinos a pesquisa da cultura popular que emblematizam o ser e estar criativo com economia e arte visual equalizados.

A Ramanda, de Regina, se despe do trágico visto em outras leituras para a obra, como a realizada pelo Maranhão (Marcelo Flecha, 1999) e mantém a energia, alegria e felicidade, no caos, que já tatuavam a rota de “fuga” da Raimunda Pinto até chegar ao desfecho do incidente da bomba atômica, ordem cronológica da dramaturgia do autor. Ramanda Regina tem alegria contagiante e libertária, sem comiserar as próprias memórias regurgitadas no percurso de alcançar o céu nordestino de redenção.
(Raimunda Regina Pinto)/foto: divulgação)

A passagem de “Ramanda e Rudá” ao segundo ato, “Raimunda Pinto”, reintensifica o drama particular coletivizado. A pesquisa musical desliza efeito impactante com “Aos Nossos Filhos”, na voz de Elis Regina. Outra palavra não explicaria melhor a escolha no rito de passagem.

Raimunda Regina Pinto é “must”! Os painéis de cartografia cênica vão se modificando, através de projeções de cidade, lugares, memórias e riscos de cena à medida que as narrativas (pré-gravadas) de apresentação da trama vão construindo o enredo da cearense leporina que vai à cata de sua sorte. “Raimunda” ganha, naturalmente, nova dinâmica e ritmos perspicazes em ação e direção propositada. Está lá a originalidade textual com seu característico apelo de construção da personagem.

Nessa segunda peça, além dos ilustrativos de projeções em correto e artístico de identidade narrativa, as cenas outras montadas com elementos como varal, caminhão e conversível governamental, portão da escola de enfermagem, avião e, demais adereços e contrarregras, cenografisam magia e encanto presentes na sugestão literária, mas operacionalizados com eficiência criativa pela direção cenográfica. Não perde a veia tragicômica, nem a ciência dramática para drama e placebo artístico.

O elenco da contracena, todo masculino (Gustavo Rodrigues, Rodrigo Candelot, Henrique Manoel Pinho, André Cursino, Milton Filho, Saulo Segreto, Ricardo Soares e Rodrigo Becker) repete uma fórmula de proximidade hareniana, mas não gera ciúme. Gesta orgulho à intertextualização da dramaturgia reginaduartiana com umas das + significativas montagens já conquistada pelo Grupo piauiense.

 Os atores que se desdobram, em todas as personagens “antagonistas” de Raimunda Pinto, desempenham brinquedo luxuoso e, em partner consentido ou dialogismo do outro no olho da protagonista, fecham o ciclo de licenças dramáticas à tragicômica leitura realizada por Regina e seu elenco de peso e medidas concentradas.

Raimunda Regina está rigorosamante engraçada, como sugere a rubrica autoral, mas carrega consigo carisma natural da intérprete e muita estrada de tijolos amarelos ansiada e, é claro, gastada pela arte do fingimento e exercício do convencimento ao ator social integrante, personagem coletivo, guardado pela quarta parede estabelecida em dramas e comédias. Sua Raimunda detém o átomo expandido em energia pura e matéria desdobrada para reunificar a quântica da escolha da profissão do fazer rir, comover e gerar reflexão através da arte.

À medida que a Raimunda Regina vai sendo apresentada e o maior espetáculo da terra dramática se estabelece, Chico Pereira vai desdobrando felicidade pleiteada por intérpretes e personagens permitidas. Regina Duarte ao começar sua dramaturgia, pelo fim, de “Ramanda” para “Raimunda Pinto”, retifica a quebra do paradigma da convenção e reinventa ruptura da criação expiada. O texto dramatúrgico é muito claro como papel de fidelidade ao literário.

A dramaturgia de cena conquista um mapeamento requintado e recheado das alegrias e satisfações artísticas, numa clareza de entendimento que parecia não ser possível a quem não carrega vivência e sangue nordestino. Está quebrado outro paradigma. A montagem de “Raimunda Raimunda” (Ramanda e Rudá/ Raimunda Pinto, Sim Senhor!) cumpre seu papel com toda eficácia que o teatro inspira e exprime à cena viva.

Salvo os contextos lingüísticos naturais e primitivos de qualquer sociedade, que estão presentes nas falas e oralidade do elenco carioca, essa montagem, do eixo sul, está para Raimunda Raimunda como o Harém está para a elogiosa ponte que o liga a atriz e, agora também, diretora Regina Duarte. Como diria o Harém, está lá o homem brasileiro no centro da cena e também um corpo cênico em corpus de renovação do encontro com uma “velha” conhecida.

Momentos indispensáveis da montagem, a alegria do circo que antecede a Miss Urânia e todo o corredor de ascensão de Raimunda, em sua troca de maridos até a volta ao seu Ceará, como metáfora da anacronia da natureza humana refletida. A projetada imagem da Bomba Atômica que abre e fecha os ciclos de vida e morte de “Raimunda Raimunda” sanduichiza os destinos de Ramanda e Raimunda Pinto. É limpa e economicamente “ensurdecedora”, enquanto vai revelando maestria e desvelo ao cenográfico que vem compor a saga realizada.

Os deslocamentos cenográficos, os figurinos ágeis e representativos, a iluminação pertinente e sóbria que desenha emoções transversais dão o tempo certo no doce oferecido à plateia. A pesquisa musical e, de efeitos, brinda o cerne de brincadeira séria. Adereços contundentes e vasos comunicantes de todo enredo. Cabe reiterar que o elenco masculino nos prende com respostas muito divertidas para Oly, Goiabinha, O encantador de Serpentes, Isaura e Lindalva, Presidente Getúlio, seu Gregório e ampliam uma Raimunda muito classuda.

Talvez Regina tenha optado em começar pelo fim, fazer uma inversão, indo do sonho e filosofia poética (pós-bomba) à realidade de “agruras” sofridas pela leporina, para em primeira sacada cunhar o + dramático e depois refrescar o ato + sério com a felicidade contagiante daquela que antecede e testemunha a explosão atômica.

Também parece que a escolha tem caráter de sobrevivência. “Ramanda” é + centrada na vida do “nada” em que estão alçadas as personagens do fim do mundo e “Raimunda” exige toda energia e tônus dinâmicos que mantenham a cena sempre viva. Finalizar a encenação com “Raimunda” é concentrar todos os átomos para matéria que requer maior fôlego e disposição para fechar o ato no mesmo nível em que começa.

A purgação da atriz culmina com a da personagem Raimunda, quando + uma vez é resgatada pelo anjo Goiabinha que lhe presenteia com as asas da redenção, após toda a força vital dividida entre intérprete e personagem. As asas são negras, mas redimem em fins do ato de licença do bem fingir.

Imagens e signos completizam vida longa refletida pelas Raimundas, de Regina. O acento, dos corpos falantes, contracena coreografias e massa cinzenta confluídas para simetrias e assismétricos atos de criação. E não há nada que negue o fato de uma cearense testemunhar a explosão da bomba. Sorte é que seja uma cearense que possa regurgitar suas memórias dramáticas e interagir a licença poética do autor.

(Raimunda Raimunda/arte do cartaz)

Raimunda Regina Raimunda é fato. Orgulha a prática do teatro brasileiro e religa sinapses à mímesis da história do homem e sua memória da dramaturgia nacional. Vida longa à Regina!

Nenhum comentário:

Postar um comentário