terça-feira, 16 de abril de 2013

Ficha certa

Ficha certa
por maneco nascimento

O Grupo Harém de Teatro está em novas temporadas e novas fichas tiradas do jogo da cena premeditada. Abriu temporada nesse mês de abril, na Sala Torquato Neto - Complexo Cultural Clube dos Diários/Teatro 4 de Setembro, às 20 horas, com o espetáculo “Abrigo São Loucas ou Três Personagens à Procura de Um Aqué”, com texto e dramaturgia de Arimatan Martins.

A temporada de sexta, sábado e domingo iniciada dias 12, 13 e 14 de abril, segue nesse próximo final de semana, 19, 20 e 21 e finaliza dias 26, 27 e 28, com o tema teatro e política, na esteira da trilogia hareniana que prospecta, desde o ano passado, montagens de textos autorais. Do projeto, já estrearam dois vértices da trilogia: “Macacos me mordam – A Comédia” (teatro e ciência) e “Abrigo São Loucas...” (teatro e política). Para 2014 está planejada a estreia de “A Revolta das Barbies” (teatro e comportamento).

Em temporada nesse abril, “Abrigo São Loucas ou Três Personagens à Procura de Um Aqué” é peça que repercute o desenredo de três Marias (Maria de Castro, Maria Fernanda e Maria Francisca) que revivem as memórias de tempos áureos (à sombra das administrações de seus maridos, chefes do poder executivo local), enquanto preparam o primeiro encontro de ex-primeiras damas.
(Maria Fernanda, Maria de Castro e Maria Francisca/fotos: acervo do Harém)

O Harém já conhece o “mètier” de fazer rir. Entre o histriônico, a picardia e o humor cáustico, o escatológico e a comédia da crítica de costumes, realiza sua dramaturgia de lazer, entretenimento e fomentação do teatro de propósitos que vem perseguindo, há pelo menos 26 anos, desde que resolveu trazer o homem brasileiro ao centro da cena. Não faz feio, na média faz mídia e aposta nas respostas colhidas de seu público fiel e seguidor.
(Maria Fernanda, Maria de Castro e Maria Francisca/fotos: acervo do Harém)

Com “Abrigo São Loucas...” reinventa a velha fórmula hareniana de colher o riso e reformular a plateia do gargarejo, sem cair no lugar comum do riso pelo riso, fácil. Repete um mote, já de domínio da cena e de recepção de público, e vai à luta para não perder o fio da “meágua”. O texto tragicômico, de Arimatan Martins, não só é inteligente, mas venal quando o assunto é político para refletir os velhos costumes da sociedade brasileira de política fisiológica, nepótica e  de cultura de prevaricação.

O autor e sua dramaturgia tratam, de forma brincada, sobre temas que nem sempre ganham recorrência na cena local, haja vista os aldeões estarem presos aos costumes de fingirem amenidades e manterem-se no ciclo dos favores e jeitinhos brasis. A trama quebra as barreiras do cínico e das imodéstias oficiais e revela como seriam as reais fibras do coração, nos bastidores oficiais, dos negócios públicos da política da aldeia local.

As Marias  representadas por Francisco de Castro, Fernando Freitas e Francisco Pelé encarnam o melhor exemplo de como se mantinham os negócios, com recursos públicos, antes da Lei de Responsabilidades Fiscais. As ex-primeiras damas vivem das memórias do tempo em que corriam leite e mel das contas públicas até suas ações sociais "dedicadas" ao povo necessitado.

As composições das personagens estão bem distribuídas entre as identidades dos atores e suas características próprias, emprestadas as suas Marias.

Maria de Castro (Francisco de Castro) carrega consigo sua herança de berço e etnia colonial branca. Maria Fernanda (Fernando Freitas), a emergente, traz traços de cepa indígena e alçou status sócio-econômico às custas de um , talvez, passe de Cinderela do agreste e concursos de misses frutas regionais típicas. Maria Francisca (Francisco Pelé) é a representante das classes populares, ascendeu de família humilde, a afrodescendente, catapultada das periferias nacionais, tornando-se uma, agora, ex-primeira dama.

O enredo é desenvolto, dinâmico e muito, muito divertido. Dividem, em hipótese confirmada, um marido ideal, que morre e deixa-as com as dívidas e problemas advindos dos negócios escusos no serviço público rentáveis. Emanuel Andrade, o partner, enfermeiro, marido e defunto de cada velório, torna a viuvez das Marias muito + engraçada, quando representa o marido morto.

Maria de Castro consegue compor-se, através de F. Castro, a uma mulher com lapsos de muito rica, diva e heroína popular ao “mètier” habitual. Tira boas risadas da plateia. Maria Fernanda, transmutada à vida através do ator F. Freitas, está muito à vontade para os rompantes e gagues eficientes, marcas e silêncios impactados por máscaras tragicômicas e falas no toque do doce. Tem muito carisma e detém atenção concentrada da plateia que a segue com fervor, por conta da simpatia desvelada na pele da ex-primeira dama, emergente.

Maria Francisca, a de F. Pelé, está muito na dela e na onda histriônica do intérprete criador. Revive meneios e tiradas de efeito de riso certo. Tempo de falas, batata. Carrega consigo os vícios e virtudes do construtor da personagem, mas com eficiência de manter a cena quente e reverberar não só memórias da cena local, como reiterar seu teatro distanciado e quase no desdém ao maior esforço. Talvez marca de qualidade. Não compromete o conjunto, alia emenda ao ato funcional.

Cenas impagáveis do espetáculo são: os velórios dos maridos de cada viúva e a preparação do primeiro encontro de ex-primeiras damas. Cada uma delas com solo bem curtido e defendido como arte do ator e sua cena. Sagacidade de dramaturgia e práxis científica de teatro bem equilibrado.

O desfecho do espetáculo ganha a cena planejada durante todo o cerco preparado em“Abrigo São Loucas...”. Arimatan Martins, Francisco de Castro, Fernando Freitas, Francisco Pelé e Emanuel Andrade douram nova pérola aos palcos locais. Acertam o olho da mosca. Ri quem quer, torce o nariz quem nunca entendeu a linguagem hareninana, mas livre arbítrio é tarefa humana.
(Maria de Castro (Evita)/fotos: acervo do Harém)

O Harém de Teatro arbitra teatro vivo, “doelha a quem doelha”. Os riscos de repertir-se são da própria natureza e, como disse Pelé, a trilogia é o novo brinquedo do Grupo, depois voltará a fazer peças sérias. Agora é bater mulas rumo ao teatro praticado, no palco, sem tratados e teorias do fingimento. Só teatro pelo teatro, para gregos, troianos e aldeões da cena nacional. É ficha certa! 

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